sexta-feira, 23 de maio de 2014

Por um modelo de dados para GPS aplicado ao ciclismo - Parte 1: Uma breve história baseada em experiência pessoal

Eu, como ciclista de longa data, peguei toda a evolução do uso de GPS em bicicleta, assim como a evolução dos serviços de mapa online (Google Earth e depois Google Maps), e mais recentemente dos sites de aglomeração exponencial de dados de GPS, cujo exemplo de maior destaque é o Strava.

No início, aventuras pelo mundo afora eram acompanhadas de mapas rodoviários de papel, ou planilhas de quilometragem baseadas nesses, provavelmente feitas à mão. Em regiões mais remotas, muita utilidade tiveram, para mim e para outros, os mapas topográficos do exército. Tanto por um meio quanto por outro, a incerteza era um fator sempre presente, incluindo estradas que haviam sido modificadas, placas na estrada que indicavam distâncias erradas, etc.

Mapa topográfico da região de Riozinho - RS, escala 1:50.000


O primeiro passo no sentido de eliminação de incerteza foi começar a usar GPS para pedalar. A simples ideia de ter um aparelho que soubesse SEMPRE onde eu estava, e principalmente se eu havia voltado pelo mesmo caminho, era revolucionária. Mas não tão revolucionária, pois nos modelos mais primitivos não havia mapa de fundo, e portanto era necessário enviar uma rota ao aparelho antes, e nem sempre foi fácil criar essa rota antecipadamente.

Meu primeiro GPS, que me acompanhou em dezenas de pedaladas,
era um Garmin eTrex Venture como o da foto acima


O passo seguinte ocorreu logo em seguida, quando fui apresentado mais diretamente ao software GPS Trackmaker, que é simplesmente GENIAL, e curiosamente é produzido até hoje pela empresa de mesmo nome, situada em Minas Gerais. Esse software faz algo que considero crucial para a atividade de "navegar no mundo de bicicleta usando um GPS": ele vincula o MAPA, e no caso do mapa embutido que já vem com o software, um mapa feito para uso eletrônico, com o APARELHO de GPS. Explico melhor por que isso é importante:
  • O mapa eletrônico, em uso no PC, é o momento em que o usuário está em contato com uma fonte difusa de dados geográficos, na confortável situação em que pesquisas, reflexões, comparações, síntese de dados a partir de outras fontes, tudo isso pode ser feito sem um limite crítico de tempo ou "cansaço". É nesse contexto que a ação intelectual do usuário, subsidiada por fontes potencialmente ilimitadas de informação geográfica (mapas, sites, trajetos percorridos por outros usuários de GPS que tenham compartilhado online, etc.) podem ser processados e sintetizados na forma de uma rota que é salva em arquivo e enviada ao aparelho.
  • O aparelho de GPS, por sua vez, é como se fosse uma extensão móvel de todo esse planejamento. A diferença é que ele é levado a campo, e em campo é que o plano é executado. Para muitos planejadores de viagens, a transformação gradual da rota planejada (desconhecida, imaginada) em rota percorrida (confirmada, ratificada, assimilada) é um componente importante do próprio prazer de fazer a viagem por locais até então desconhecidos. O próprio fato de o GPS tornar, em tempo real, um lugar desconhecido em um lugar, de certa forma, "conhecido", é a razão de ser possível fazer viagens por lugares desconhecidos, coisa que não seria possível de outra forma - ao menos não com a mesma eficácia.
Software GPS Trackmaker com mapa de fundo
Durante muito tempo, essa era uma atividade que atraiu um nicho de participantes, em geral adeptos de atividades de aventura, que percorriam diversos lugares com seus GPS e iam compartilhando essas rotas, que num segundo momento começaram a alimentar mapas feitos a mão, já em formato eletrônico que era então compilado e transformado em mapa base para uso tanto nos softwares de edição, quanto nos mapas de fundo dos aparelhos mais sofisticados que tivessem essa funcionalidade. Um exemplo clássico de uma comunidade brasileira dedicada é o Projeto Tracksource. Iniciativa similar, mas com um foco diferente, é o Open Street Maps (OSM). Ambos envolvem a produção de conteúdo geográfico público por uma comunidade de voluntários que criam, editam e aperfeiçoam um grande mapa digital.

Um fator que foi definitivo - na minha opinião - e que teve tão grande sucesso que hoje chega a ser banalizado, é o "boom" de serviços de mapa online, do qual o maior exemplo é o Google Maps. Embora no início as fotos de satélite não fossem em alta resolução em todos os lugares, nem houvese estradas roteáveis no mapa inteiro, a cada ano pôde-se perceber uma absurda evolução, ao ponto de hoje até mesmo as estradas de terra estarem TODAS identificadas e roteáveis (ao menos no Rio Grande do Sul, que é onde moro e costumo pedalar), de forma que não seria exagero dizer que a edição manual de mapas para envio ao GPS se tornou obsoleta: vale mais a pena clicar no ponto A, depois no ponto B, e mover os pontos intermediários para onde se queira passar, exportando a rota gerada para um arquivo .KML que pode facilmente ser enviado aos aparelhos GPS por meio de algum software.

Dando sequência à série de revoluções (lembrando que essa é minha perspectiva pessoal, outras pessoas provavelmente terão impressões bem diferentes), uma "dupla revolução" marca a mudança de um aspecto conceitual importante na relação Bicicleta + GPS: a popularização dos smartphones com GPS, e a popularização de um determinado site de armazenamento de atividades esportivas gravadas com GPS: o Strava.

Essa mudança conceitual de que falo consiste na mudança do foco de atenção com relação ao dado que o GPS produz: ao invés de extrair do trajeto a informação geográfica (distância, altimetria, lugares percorridos, mapa, ou seja, informação sobre o terreno), agora a informação mais importante, é a informação sobre o ciclista! Em um contexto em que as trilhas já foram trilhadas, os terrenos já foram explorados, e principalmente e todo o planeta já foi fotografado e mapeado, podendo ser visto na internet a qualquer momento, o que passou a contar mais é algo que secretamente era o sonho de todos aqueles que já tiveram um velocímetro na bicicleta: gravar TODO o trajeto. Saber em que velocidade eu estava, e qual foi a hora em que eu passei, em TODOS OS PONTOS do trajeto. Agora já não é mais necessário dar start, stop ou mesmo zerar o velocímetro. Grava-se tudo, e depois se analisa, seleciona, segmenta, compara, se realizam todas as operações de análise em casa, com ferramentas computacionais avançadas diponíveis publicamente no browser, e em constante evolução.

Painel de análise de atividade do Strava, que permite navegar nos gráficos, selecionar determinados segmentos, e saber médias e máximas parciais, diretamente no browser


Assim sendo, passamos de uma situação de escassez e hipervalorização da informação geográfica (a glória era achar um arquivo, compartilhado por alguém, que contivesse a trajetória para o acesso a determinado ponto turístico - pois do contrário seria impossível ir até ele com certeza), para uma situação de abundância que beira a banalização, onde a gente chega ao lugar já sabendo até quais as placas vai encontrar na estrada (pois já analisou o caminho no Google Street View, por exemplo).

No campo da análise de movimento, também passamos de uma situação de escassez (onde as únicas informações que restavam eram o tempo, a distância, a velocidade média e a velocidade máxima, marcadas no velocímetro), para uma situação de abundância, onde dia a dia se acumulam trajetos e mais trajetos, nossos, dos nossos amigos e de desconhecidos, que contêm informação suficiente para reconstituir as atividades ciclísticas praticamente como elas aconteceram de fato, como é o caso do Strava Activity Playback.

As questões que surgem com tudo isso são:
  • Estamos de fato aproveitando todos os benefícios que essa avalanche de informação, que é tão recente e tão inédita, é capaz de nos proporcionar?
  • O que é possível fazer com conjuntos de dados de GPS ciclísticos tão vastos como o do Strava? Ou, num nível pessoal, com sua própria coleção de trajetos?
  • Que tipo de software essa "nova geração" de dados requer para que possa mostrar todo seu valor? Que algoritmos, operações, entidades, objetos, devem ser criados para corretamente representar e manipular essa informação?
  • Os formatos de arquivo disponíveis atualmente (.GPX, .KML, etc.) são adequados para representar essas entidades? Especificamente esses dois formatos representam o mesmo TIPO de elementos?
Enfim, essas e outras perguntas eu pretendo aprofundar com novas reflexões em postagens que seguirão.

2 comentários:

  1. Falando em formato, dado, captação e análise/seleção, o que poderia existir é um formato totalmente genérico, onde eu defino QUE dados quero que sejam gravados. Ou, pelo menos, um formato mais completo, onde haja campos para cadência, batimentos cardíacos, temperatura, pressão, luminosidade, nível de ruído, (adicione a função do seu sensor aqui :-p), além das óbvias e mais que batidas informações 4D.

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    1. Pois é, Arkanon, o GPX, sendo XML, é por definição "extensible", e a Garmin usa isso através do namespace "garmin extensions", para inserir esses dados que tu falou. Me desagrada profundamente, porém, que isso tenha um "aroma" proprietário. Pretendo abordar também isso na próxima postagem, cuja intenção é discutir os formatos mais comuns (GPX e KML), entre outros, e a forma como eles se relacionam com um (suposto) MODELO de dados.

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